A bicicleta, uma máquina de tração humana por excelência, vai entrar na longa lista de aparelhos que trocaram o manual pelo eletrônico quando um novo sistema de marchas fizer sua estréia no fim de semana do Tour da Califórnia.
A Shimano promete levar facilidade e precisão à mudança de marchas, que acontece ao leve toque de dois botões, a preocupação dos tradicionalistas é se o aparelho pode erodir os princípios básicos do esporte.
"As pessoas escolhem a bicicleta precisamente porque seu movimento exige apenas esforço humano, e nada poderia ser mais simples, independente e autônomo," escreveu Raymond Henry, um historiador do ciclismo de Saint Etienne, França, em uma mensagem de e-mail. "Qualquer fonte externa de energia, não importa quão fraca, vai contra essa filosofia."
Se o sistema de câmbio vai se tornar o novo iPod e redefinir a tecnologia do ciclismo ou acabar como a versão do esporte da fita de oito faixas, isso dependerá de inúmeros fatores, os mais óbvios sendo desempenho, confiabilidade e custo.
Duas versões anteriores da mudança eletrônica de marcha, da companhia francesa Mavic, falhavam com freqüência na chuva. E outra companhia, Campagnolo, adiou o lançamento de sua versão devido à desaceleração econômica.
A versão da Shimano, conhecida como Dura-Ace Di2 7970, está sendo usada por três equipes profissionais competindo na Califórnia: Columbia High Road, Garmin Slipstream e Rabobank. Cerca de 10 ciclistas correrão com o sistema, apesar de terem usado o aparelho em apenas um ou dois treinos desde que o receberam no final da semana passada.
Bob Stapleton, proprietário e gerente geral da Columbia, disse que muitos de seus ciclistas tinham dúvidas sobre o uso de bicicletas que podem literalmente ficar sem bateria. O sistema Di2 não tem ativação manual caso a bateria acabe. Isso pode ser irritante ou desastroso, dependendo do terreno e da relação de transmissão que a bicicleta estiver. A Shimano estima que a bateria dure cerca de 1,6 mil quilômetro por carga.
"Suas carreiras podem ser definidas pelos resultados de uma única corrida," disse Stapleton sobre seus corredores. "Portanto, eles priorizam a confiabilidade acima de tudo."
Stapleton, um experiente ciclista amador, tem usado extensivamente o sistema Di2 e é um convertido.
"Acho que toda bicicleta top de linha vai ter um daqui a três anos, talvez menos," disse, acrescentando que o sistema também elimina boa parte da manutenção exigida por sistemas mecânicos.
Um conjunto completo de peças com marchas eletrônicas vai custar cerca de US$ 1.250 a mais do que a última versão mecânica, vendida por cerca de US$ 2.750. O custo de atualizar um sistema Shimano deverá ficar em torno de US$ 2,2 mil. O sistema vai funcionar em praticamente todas as bicicletas de corrida.
Este ano, a Giant, maior fabricante de bicicletas do mundo, vai oferecer uma bicicleta projetada para usar apenas partes eletrônicas por cerca de US$ 14 mil, que inclui o custo do Di2. Se os consumidores aceitarem bem o aparelho, ele provavelmente vai seguir o padrão de outros eletrônicos e baixar de preço significativamente com o tempo.
A tecnologia de mudança eletrônica de marchas passou por um longo tempo de desenvolvimento. Protótipos do primeiro sistema da Mavic, o Zap, fizeram uma breve aparição no Tour de France de 1992 e a companhia lançou sua segunda tentativa, o Mektronic, em 1999.
Tanto Shimano, que está para as peças de bicicleta como a Microsoft está para o software de computador, quanto sua respeitável competidora italiana Campagnolo passaram boa parte desta década testando protótipos do sistema em bicicletas de corredores profissionais. Os protótipos não costumavam ostentar marcas, provavelmente para limitar o constrangimento de resultados infelizes como os do Zap.
Os sistemas da Campagnolo e da Shimano compartilham o projeto básico de descarriladores mecânicos. Um paralelogramo move a corrente para trás ou para frente e, na parte de traseira, há duas rodas que mantêm a corrente firme.
Dois botões eletrônicos atrás da alavanca do freio permitem que o ciclista mude de marcha. Um leve toque em qualquer um dos botões do Di2 envia um sinal eletrônico através de um fio até um pequeno motor dentro do câmbio descarrilador, movendo a corrente com o giro de uma engrenagem helicoidal. Mesmo Devin Walton, porta-voz da Shimano, reconhece que no descarrilador traseiro há pouca ou nenhuma diferença na mudança de marchas entre as opções eletrônica ou mecânica da companhia.
Os ganhos ficam mais óbvios, entretanto, no descarrilador frontal, que move a corrente entre os dois grandes anéis dentados na manivela da bicicleta.
Isso é possível em parte porque o descarrilador eletrônico frontal é capaz de realizar reajustes constantes para refletir as mudanças da posição da corrente causadas pelo descarrilador traseiro, usado com maior freqüência. Isso permite que o frontal use um mecanismo de mudança de marcha mais eficiente, um que poderia até mesmo deixar ciclistas distraídos sem os inoportunos ajustes de um sistema mecânico.
A Campagnolo acredita em seu sistema eletrônico e espera por uma recuperação econômica antes de lançá-lo. "Recebemos respostas extremamente positivas sobre a rapidez, precisão e facilidade da mudança de marchas," disse Lerrj Piazza, porta-voz da Campagnolo.
Como as equipes de ciclismo dependem do patrocínio de empresas como Shimano para sua sobrevivência financeira, muitos ciclistas demonstraram relutância em discutir suas preocupações acerca do sistema, que incluem a possibilidade de falhas na bateria e a dificuldade de mudar marchas usando luvas devido aos pequenos e sensíveis botões. Mas após alguns treinos, George Hincapie, da Columbia, disse concordar com o proprietário da equipe, Stapleton, sobre seus méritos.
"A marcha é impressionante," disse. "Fiquei impressionado no momento em que experimentei."
A ação do sistema eletrônico é tão desprovida de esforço que, comparada às alavancas mecânicas, deixa o usuário se sentindo quase desconectado da bicicleta.
Após experimentar o sistema, Jonathan Vaughters, chefe-executivo da Garmin Slipstream, prevê que ele será inicialmente mais comum em bicicletas especiais para corridas de tempo e triatlos. Vaughters, ex-ciclista profissional, acredita que boa parte da margem de dois segundos com que Chris Boardman ganhou a corrida de abertura do Tour de France de 1997 se deveu ao descarrilador eletrônico Mavic que usava. O aparelho, que funcionou nos 7,3 quilômetros da corrida, permitiu que Boardman mantivesse sua posição aerodinâmica mesmo enquanto trocava marchas.
Se o Di2 se provar confiável e um sucesso no mercado, não espere por uma transmissão automática a seguir. Walton diz que um sistema desse tipo, pelo menos para bicicletas de corrida, precisaria analisar o estado físico de um ciclista, além de ler sua mente.
"Não há como o sistema saber quando você vai disparar," disse Walton. "Em uma competição, você precisa estar no controle."
Tradução: Amy Traduções
The New York Times